O Dia da Reforma, comemorado em 31 de outubro, carrega neste ano uma celebração adicional: o bicentenário da presença luterana no Brasil. Trazida pelos imigrantes alemães, em 1824, a religião influenciaria diretamente na formação, no estilo de vida e na identidade cultural local, até hoje em evidência, graças a um legado de contribuições a ser reconhecido, não apenas pelos adeptos, mas por toda a sociedade.
No RS, encontra-se a maior comunidade luterana do Brasil. Em Teutônia e entorno – um dos principais polos da colonização alemã no estado –, as características culturais do luteranismo balizaram o desenvolvimento da microrregião e seguem presentes no cotidiano das localidades. Para além da religiosidade, permeiam os valores e hábitos comunitários, seja na educação, no canto coral, na valorização do trabalho ou no senso de cooperação.
Para compreender esse processo, é preciso contextualizar a chegada dos imigrantes alemães luteranos em um país oficialmente católico na primeira metade do Século 19. Oriundos de um território que havia sido berço da Reforma Protestante, em 1517, esses europeus carregavam fortemente consigo os preceitos ensinados por Martinho Lutero. Em um ambiente desconhecido, adverso e desafiador, a fé era fator decisivo para a sobrevivência.
De acordo com o pastor Martin Norberto Dreher, doutor em História da Igreja, os luteranos eram considerados apenas “tolerados”. Vale lembrar que os imigrantes vieram para povoar, trabalhar e ajudar no desenvolvimento de um país que recém havia abolido o sistema escravagista. “Não podiam ter templos com torres, sinos e cruz, pois não seguiam a religião do Império”, exemplifica.
Conforme Dreher, os matrimônios não eram reconhecidos, mas considerados “concubinatos”. Seus filhos eram considerados filhos naturais. Em caso de matrimônio misto, tinham que renunciar a uma educação luterana de seus filhos. “Não podiam sepultar seus mortos em cemitérios públicos. Por isso, criaram seus próprios cemitérios que, passados 200 anos, são centros de preservação de memória comunal”, constata.
Luzes da educação
Na área da educação, as contribuições foram de extrema relevância. Um dos pontos centrais da Reforma proposta por Lutero no Século XVI é o acesso à educação. Influenciado pelos ideais iluministas e renascentistas, ele defendia a educação como forma de tirar o povo do obscurantismo.
No Brasil Imperial, três séculos depois de Lutero, a educação ainda estava restrita aos monastérios, conventos e, claro, à nobreza. Os imigrantes alemães, portanto, construíram e mantiveram escolas em suas comunidades, antes mesmo de suas igrejas, até então proibidas, para propagar o conhecimento e a tradição aos filhos. “Num país que não lhes fornecia escolas, fundaram e mantiveram instituições de ensino, contribuindo para a erradicação do analfabetismo em um país de analfabetos”, descreve Dreher.
Pesquisas indicam que os luteranos tiveram mais de 1,4 mil escolas no Brasil Meridional, muitas delas existentes até hoje. O historiador lembra que, mais tarde, durante a Segunda Guerra Mundial, o Estado Novo de Getúlio Vargas tiraria as escolas dos imigrantes, em um movimento de perseguição aos costumes alemães. “As que sobreviveram foram confiadas aos governos municipais. Outras continuam a fornecer ensino de qualidade”, sintetiza.
O pastor sinodal do Sínodo Vale do Taquari, Luis Gustavo Sievers, também ressalta a participação dos luteranos no desenvolvimento do ensino no país. Ele lembra que Martinho Lutero é considerado o “pai da escola pública”, pois foi ele quem lançou as bases para o ensino obrigatório, como dever das autoridades, inclusive para as meninas. E a valorização do ensino foi seguida à risca pelos imigrantes.
Outro aspecto muito presente nas comunidades luteranas está na valorização do trabalho. De acordo com Sievers, a Teologia Luterana inclui “a valorização do cotidiano da vida”, e as atividades laborais têm papel importante nesse sentido. “Diz respeito à dignidade de cada um, do artesão, do camponês. Desempenhar um trabalho bem feito, a um preço justo, é colaborar para um mundo melhor e a vontade de Deus”, explica.
Esse entendimento contrastava com os paradigmas da época. “A aristocracia brasileira da época não pegava na enxada, pois considerava isso indigno”, exemplifica o pastor. Já os imigrantes luteranos tinham apreço pelo trabalho braçal, pelo artesanato, manufatura e a lida no campo. Introduziram diversas profissões e fábricas, de diversos setores, contribuindo diretamente com o desenvolvimento do país.
Saúde e alimentação
O cuidado com a saúde e a alimentação saudável também integram esse legado. As mulheres costumavam tomar a frente e organizavam espaços dedicados à saúde, aos cuidados das famílias. Alguns hospitais do RS, inclusive, surgem desses locais. As gestantes também recebiam atenção especial. Havia ainda o importante papel das parteiras.
Sem remédios, plantas específicas para alimentos e chás com propriedades benéficas à saúde eram cultivadas e preparadas. Existia também o incentivo à alimentação saudável como forma de prevenir doenças. Posteriormente, surgem os Centros de Apoio e Promoção da Agroecologia (Capa).
No campo da saúde, o cuidado com as crianças também merece destaque. Os índices de mortalidade infantil eram altíssimos no Brasil Imperial. Proporcionar o desenvolvimento seguro dos filhos era uma preocupação central.
Cultura e comunidade
Na cultura, o canto coral era forma de preservar as tradições e a identidade cultural. As igrejas funcionavam como centros de atividades musicais, onde corais eram formados, com a prática regular do canto. Vale lembrar que a participação da comunidade nos cantos litúrgicos surge com a Reforma, visto que a Igreja Católica da Idade Média restringia a musicalidade religiosa ao canto gregoriano.
Para além das igrejas, as atividades dos corais representavam socialização e integração comunitária.
Nesse sentido, inclui-se também a formação de grupos e irmandades, com forte senso cooperativista e solidário. As Ordens Auxiliadoras das Senhoras Evangélicas (Oase), as Legiões Evangélicas Luteranas (Lelut), entre outros.
Culto ecumênico
Como forma de celebrar o Dia da Reforma Luterana e reconhecer esse legado, diversas atividades são promovidas nas paróquias vinculadas à IECLB. Em Teutônia, a Paróquia Luterana do Bairro Canabarro realizou, na noite dessa quarta-feira, 30, um culto ecumênico, com descerramento de placa alusiva ao bicentenário da presença luterana e plantio de uma árvore como símbolo do compromisso com o futuro do planeta e do cuidado com a criação de Deus.
“A celebração marca algo importante em nossa história, onde imigrantes europeus um dia chegaram, abriram picadas e construíram escolas, hospitais, cemitérios e igrejas. A Igreja Luterana contribuiu de forma significativa para o desenvolvimento, crescimento e educação de nosso município também. Aqui temos mais de 156 anos de presença, e isso deve ser celebrado”, ressalta a pastora Cristiane Echelmeier.
QUEM FOI MARTINHO LUTERO
Martinho Lutero nasceu em 10 de novembro de 1483, em Eisleben. Estudou direito antes de se tornar monge agostiniano e, posteriormente, doutor em Teologia. Em 1517, Lutero afixou suas 95 Teses na porta da Igreja de Wittenberg, contestando a prática da venda de indulgências e criticando a corrupção da Igreja Católica da época. Isso marcaria o início da Reforma Protestante.
Principais obras
- 95 Teses (1517)
- A Liberdade do Cristão (1520)
- Catecismo Menor e Maior (textos para educação religiosa)
- Tradução da Bíblia para o idioma alemão